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quinta-feira, 2 de maio de 2013

EM PAUTA: ENTREVISTA COM FREI BETTO NO JORNAL DO COMMERCIO



Entrevista com Frei Betto
Publicada no Jornal do Commercio - 28 de abril de 1013


IGREJA NÃO MUDARÁ TÃO CEDO

SAÍDA DE BENTO

Para mim não foi nenhuma surpresa. O intelectual e poder administrativo não combinam. O intelectual fica pensando nos livros que não está lendo ou no que está deixando de escrever. Sentia isso no (Joseph) Ratzinger. O que faz ele feliz é a vida intelectual, tanto que ele escreveu três livros em oito anos de papado. Significa que ele dedicou tempo a isso, enquanto administrava essa balbúrdia que foi exposta ao público com a renúncia dele. Além disso, nos livros ele assina como Joseph Ratzinger, e não como papa Bento XVI, para deixar claro que ninguém é obrigado a acatar o que ele disse nas publicações. Ainda temos as questões da falência do Banco do Vaticano e da rede de prostituição de seminaristas homossexuais. Tudo isso o levou a sentir um peso que ele percebeu que não daria mais conta.

PAPOLATRIA

A renúncia de Bento XVI foi um grande ato de humildade. A renúncia do papa está prevista no Código de Direito Canônico, na cláusula 332, mas não acontecia há 600 anos. Isso ajudou a criar um fenômeno teológico – e do meu ponto de vista, constrangedor – que é a “papolatria”, uma certa adoração pelo papa como se ele fosse uma figura intocável. Soma-se a isso o fato de que o papado é a única monarquia absoluta que resta no Ocidente. Só tem paralelo na Arábia Saudita, onde o rei não dispõe de parlamento. Essa estrutura monárquica absoluta é tão forte que não se permite a alguém processado pela Santa Sé o direito de ter advogado de defesa. Leonardo Boff, quando processado pela Congregação para a Doutrina da Fé, não teve direito formal de defesa. Para usar um exemplo recente, o mesmo aconteceu com o Paolo Gabriele, exmordomo de Bento XVI no caso do vazamento de informações internas do Vaticano. O problema é que nãose pode abrir um precedente de que, quem sabe, a autoridade do papa esteja equivocada. Isso é uma aberração. Essa papolatria foi muito reforçada no pontificado de Pio IX, que decretou o controvertido dogma da infalibilidade papal. Ele foi criado no contexto histórico do primeiro Concílio Vaticano, convocado para discutir-se o avanço do progressivismo, advindo das mudanças sociais causadas pela Revolução Industrial. A Europa deixou de ser rural para ser urbana, o que acarretou em mudanças radicais, semelhantes às que vemos hoje com a internet. Pio IX começa então a condenar o progresso. Hoje parece anedota, mas é verdade: ele condenou, por exemplo, a luz elétrica, pois ia criar mais oportunidades para o pecado, já que as pessoas deixariam de dormir cedo à noite. Ele foi ridicularizado por isso, mas estabeleceu que o papa é infalível em questões de fé e moral. Felizmente esse recurso foi muito pouco utilizado desde então, embora a mídia acabe induzindo as pessoas a acreditarem que toda manifestação papal tem que ser acatada pelos fiéis, o que não é verdade.

FRANCISCO

Ele já chegou assumindo um nome que ninguém tinha pensado, ao mesmo tempo, representando uma das figuras mais célebres da história, que é São Francisco de Assis. Claro que, na cabeça de Jorge Mario Bergoglio, essa escolha tem um duplo significado, representando também Francisco Xavier, um dos fundadores da ordem jesuíta da qual o próprio papa faz parte. Mas logo de cara pudemos ver algumas mudanças, como um maior diálogo interreligioso. Para a sua posse, convidou líderes religiosos de todo o mundo, e deu aos patriarcas da Igreja Ortodoxa um tratamento que nenhum papa deu antes. Houve mudança de tom, já que os pontífices anteriores sempre trataram eles como irmãos menores, e agora eles foram colocados no mesmo nível. Mas isso tem coerência com a vida dele, que sempre foi homem de muita sensibilidade para o mundo dos pobres. Uma boa forma de compreender o pensamento dele é através do livro SOBRE O CÉU E A TERRA (da Companhia das Letras). São vários diálogos com o rabino Abraham Skorka sobre temas polêmicos, como os ateus, a homossexualidade e eutanásia. Bergoglio destoava do conjunto, andava de metrô e ônibus, parava na rua pra conversar com mendigo. Não é o monarca. Ele fez a opção pelos pobres e indica uma reforma na Igreja.

DESAFIOS

O mais importante é a reforma da Cúria. Ele deu um passo importante com a nomeação dos cardeais que farão parte do colegiado (que estudará uma reforma na Igreja). Creio que esse desafio ele vai enfrentar, só não sei em que momento. O papa Francisco vive o mesmo problema da presidente Dilma no Brasil: o papa anterior não só é vivo, como decidiu equivocadamente continuar morando no Vaticano. Acho que a gente só vai conhecer verdadeiramente o que pensa Bergoglio depois que Ratzinger morrer. Como ele vai tomar uma medida sem que o papa emérito consinta? Além disso, Ratzinger é considerado pela ortodoxia como o teólogo número um da Igreja Católica. Outro desafio é o celibato obrigatório, que leva à reinserção dos padres casados. São 100 mil no mundo e 5 mil no Brasil. Nem todos desejam voltar, mas uma boa parcela, sim. No passado havia duas vocações distintas: o sacerdócio e o celibato. Só depois que progressivamente o segundo foi imposto. Era exigência de Jesus que os padres fossem celibatários? Na Bíblia diz que Pedro tinha uma sogra, o que significa que ele era casado, mas mesmo assim foi escolhido chefe da Igreja. Também de acordo com os Evangelhos, o grupo de Jesus tinha mulheres, sendo que uma delas foi a primeira a testemunhar a ressurreição, Madalena. É preciso também renovar a estrutura de evangelização, que está superada. Essa divisão em paróquias é uma coisa medieval. Na Idade Média você só conhecia o seu vizinho geográfico, estava limitado às redondezas de onde morava. Não existia rádio, TV, telefone muito menos internet. Hoje é diferente, estamos num mundo em que o critério de proximidade mudou, não é mais físico.

CONCÍLIO

Para já causar um grande impacto na Igreja, o papa Francisco não precisa convocar um novo concílio, basta pôr em prática algumas propostas do Concílio Vaticano II (de 1962). Na época, a Igreja estava defasada. Dentro entrelaçavam três movimentos de renovação que não eram bem vistos pelo papado. O primeiro foi o movimento ecumênico – o diálogo com os irmãos na fé, que pertencem a outras igrejas (como a ortodoxa e protestante). Durante muito tempo isso foi visto como heresia. “Somos a única e verdadeira Igreja e fora não há salvação.” É importante não confundir ecumenismo com diálogo interreligioso. O primeiro se dá dentro do universo cristão, enquanto o segundo é a relação com outras religiões, como o islamismo e o judaísmo. Outro ponto foi a reforma litúrgica. A liturgia oficial até os anos 1960 é a romana, criada nos moldes da nobreza europeia. Isso trouxe grandes problemas para a evangelização em outros países, onde não existe afinidade com a cultura da Europa, como é o caso da China. Antes da reforma, no rito do batismo, se punha a saliva do padre na criança. Mas para os chineses, não há coisa mais porca que passar sua saliva para alguém. Os padres que batizavam lá antes de da Revolução de Mao Tsé-tung eram repudiados por causa disso. Outro exemplo é o voto de pobreza da Ordem das Carmelitas Descalças. Quando Santa Teresa de Ávila fundou a ordem, disse “temos que usar sandálias de corda”, porque era o calçado mais barato que havia na Espanha na época (século 16). Hoje tem mosteiro na América Latina que manda importar, pagando a euro, a sandália de corda da Espanha. Usa chinelo de dedo! O maior agravante era a língua. Quem entendia latim? Só o clero. Mesmo assim, em alguns casos, bem mais ou menos. O rito, que deveria ser uma celebração popular, era feito num idioma que é um mistério para todos os fiéis. A liturgia deve ser expressão da índole do povo, da cultura. É bom para o nosso povo ter uma liturgia mais festiva. O terceiro ponto foi a ação católica, que valorizava o trabalho de evangelização dos leigos. Esses três movimentos resultaram no Concílio Vaticano II. Ele representou uma verdadeira revolução na Igreja Católica, de tal forma que propôs algo cujo primeiro passo só foi dado agora, pelo papa Francisco: que a Igreja seja dirigida por um colegiado de cardeais. O papa nomeou uma comissão que vai, junto com ele, administrar a Igreja. Queira Deus que isso quebre a estrutura da monárquica absoluta.

O PODER DA CÚRIA

João XXIII, quando convocou o Concílio Vaticano II, não consultou a Cúria, pois sabia que se consultasse seria impedido. A Cúria sempre teve um enorme poder de transformar o papa em seu refém, como toda burocracia estatal. Nos dois anos que fiquei no Palácio do Planalto (assessor especial do presidente Lula, entre 2003 e 2004), pude ver o poder daquelas pessoas que estão há dezenas de anos operando a máquina pública. Elas sabem todos os meandros, todos os detalhes que o político nomeado recentemente não consegue tomar pé. E quando consegue, sai e dá lugar a outro. Quando a Cúria tomou conta do Concílio Vaticano II, após a morte de João XXIII, acabou impedindo que os progressistas fizessem propostas de mudanças mais profundas.

MORAL SEXUAL

Esse é, para mim, o maior nó da Igreja Católica. No Concílio, alguns bispos quiseram levantar essa questão, com pontos como o papel da mulher e o celibato obrigatório, mas a Cúria e vários cardeais conservadores se opuseram. Um dos líderes da proibitiva foi o cardeal francês Jean Daniélou, que, por ironia, veio a falecer anos mais tarde de um ataque cardíaco na casa de uma prostituta. O problema é que a doutrina da Igreja de hoje é a mesma desde o século 13. É a famosa pergunta da aula de teologia: “Um escravo pode ser sacerdote? Pode, desde que liberto, porque, como homem, detém a plenitude humana”. A segunda pergunta: “Uma mulher pode ser sacerdote? Não, ainda que livre. Porque a mulher é inferior ao homem e não detém a plenitude humana, pois não faz uso completo da razão, assim como as crianças e os loucos”. Isso ainda está em vigor até hoje. Todas as discussões derivam desse fundamento. Enquanto isso não for mudado, as coisas não vão avançar. Mas como “Deus escreve certo por linhas tortas”, aflorou na Igreja o escândalo da pedofilia. É preciso deixar claro que esse não é um problema exclusivo da Igreja, mas um mal de todo o mundo. A questão é que não dá para tapar o sol com a peneira. Joseph Ratzinger, quando foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, enviou mensagem aos bispos para que, se soubessem de casos de pedofilia entre os padres, os afastassem das paróquias, tomassem medidas, mas que não comunicassem aos órgãos públicos. Foi conivente. Depois, já como papa – e com casos aparecendo entre os bispos e cardeais –, ele voltou atrás, e disse que os envolvidos tinham que ser punidos criminalmente. O celibato um dia vai ter que acabar. Dois países que eram grandes fábricas de sacerdotes, Holanda e Bélgica, hoje não têm um seminarista. Todos os seminários estão se tornando hotéis e pousadas de luxo, não existe mais a vocação. Os jovens não querem mais entrar nessa. É muito difícil inspirar esse tipo de atitude quando as pessoas estão perdendo o tabu da sexualidade.

DITADURA

Bergoglio não foi conivente. Fico com a opinião do Pérez Esquivel: se ele pecou, foi por omissão, não por transgressão. Não foi cúmplice da ditadura. Na época ele não era o bispo, estava mais para um padre ingênuo, não estava ligado em política. Mas ajudou perseguidos discretamente, como outros padres no Brasil também fizeram. A Igreja argentina é incomparavelmente mais elitista que a brasileira. Lá a religião católica é oficial. Padres e bispos recebem salário do governo, por isso na ditadura a Igreja foi cúmplice.

EVANGÉLICOS

A CNBB emitiu um comunicado afirmando que quer valorizar as comunidades de base. Ela percebeu que está perdendo espaço. A Igreja Católica no Brasil diminui seu número de fiéis numa cadência de 1% a cada ano. Não me posiciono nessa competição por fiéis. Acho bobagem, a condição religiosa de ninguém me diz nada. O que me diz é atitude de vida. O que não dá é para botar uma igreja e esperar os fiéis aparecerem. No culto da Igreja Universal, por que as pessoas ficam 3 horas? Porque é interessante, elas participam e também são protagonistas. O pastor é um igual a eles. Para ser padre tem que ser homem, celibatário e ter quatro anos de filosofia e outros quatro de teologia. Não dá para competir. Nós não sabemos lidar com os meios de comunicação, eles sabem. Chegam ao luxo de alugar espaço na TV aberta, ficam horas no ar e com audiência. Se você liga na Rede Vida, ou na Canção Nova, é uma tristeza. Um dia vi um bando de beatas na TV rezando o terço e lembrei da minha avó. Ela rezava pelo rádio, mas isso faz sentido, pois não tem imagem. Mas a TV tem movimento, não pode querer que as pessoas fiquem rezando, com tanta coisa atraente nos outros canais. Quanto ao avanço dos evangélicos na política, os verdadeiros evangélicos têm que se impor. O pastor Marcos Feliciano não representa o pensamento e as atitudes de todos os protestantes.

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