*Por Marisa Lajolo
No
século XVII, o escritor inglês, de 59 anos, John Milton (1608-1674), publicou
um poema chamado Paradise lost(Paraíso perdido). Na época, a Inglaterra
andava às turras com a Holanda, e Londres se rescaldava do incêndio terrível
que por lá lavrara um pouco antes.
Neste
ano de 2015, também de muitos incêndios, Frei Betto, escritor brasileiro de 70
anos, relançou, reescrita, obra com o mesmo título do livro inglês. Paraíso
Perdido – viagens ao mundo socialista, originalmente publicado em 1993 (Geração
Editorial), com capa bem menos sóbria do que a atual (Rocco).
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Por
que um mesmo título, com quase quatro séculos de distância entre um e outro? Um
acima e outro abaixo do Equador?
Meus
botões - bons leitores - ficaram curiosos. Não acreditam em coincidências,
sobretudo quando se trata de escritores da estatura de Frei Betto. Retornei ao
poeta inglês e formulei uma hipótese que meus botões aprovaram: vários são os
paraísos, cada tempo (ou cada um?) tem o seu. Oooops... Talvez um plural fique
melhor: cada tempo / cada um tem oS seuS. Será? Pode ser.
O
paraíso de que fala John Milton é o bíblico, aquele de Adão e Eva, da serpente
etc. O de Frei Betto é o de experiências socialistas, que pipocaram no planeta,
primeiro na Rússia e, depois, por outros lugares, inclusive em "nuestra
America".
Quem
sabe pode ser assim? Meus botões acham que pode. E voltaram ao livro de Frei
Betto, que não podia ser mais oportuno.
Livrão
grosso, mais de 500 páginas, 79 textos que podem ser lidos na sequência
(cronológica) em que o livro os organiza, ou na sequência que o leitor quiser
estabelecer. Ponto para o autor, que acredita que leitores têm todos os
direitos!
Um
último texto – o de número 80 - tem por título Epílogo, e é uma espécie de
conclusão: amarrando o que vinha sendo dito nos capítulos anteriores, propõe
uma interpretação para a falência constatada: por que o paraíso socialista
teria sido perdido?
Os
capítulos que constituem o miolo do livro relatam muitas viagens que Frei Betto
empreendeu a países socialistas, levando a proposta de uma articulação entre
experiências do socialismo e cristianismo. Ora sozinho, ora em equipe,
conversando às vezes com autoridades e, outras, com gente da rua. Olhos e
caderninho do viajante estão sempre bem abertos e atentos.
Na
transformação das anotações de viagem em livro, mais uma manifestação de
respeito aos leitores, para os quais vale a pena recordar passagens da história
que podem iluminar a história. No caso, história às vezes com maiúscula e,
outras, com minúscula. História e histórias. Da construção e derrubada do Muro
de Berlim ao cotidiano de um motorista de Havana.
Pela
mão de Frei Betto, o leitor viaja pela longa e sofrida história dos povos que
viveram experiências e derrocadas socialistas, e pelos bastidores de acordos
políticos e gestos diplomáticos.
Beleza
de livro!
Paraíso
Perdido é uma leitura fundamental. Fundamental, sobretudo, para nós,
cidadãos brasileiros adultos, desta segunda década do século XXI. Para alguns
de nós, as experiências do socialismo - vividas, lidas, ouvidas ou estudadas -
representaram uma primeira perspectiva concreta de um mundo mais humano. O
livro de Frei Betto nos lembra que tal perspectiva - pela qual, aliás morreram
tantos homens e mulheres - constituía uma "primeira" experiência
histórica. Que, se quase nunca deu certo - e parece mesmo não ter dado - pode
deixar (e efetivamente deixa) lições sugestivas para outras e novas
experiências que, com certeza, virão. Pois não vivemos um tempo que assiste ao
retorno do povo à rua, pedindo correção de rumos, fazendo reivindicações de
largo espectro?
No
capítulo final, o autor se vale do que viu e aprendeu nas viagens relatadas
para alinhavar uma reflexão extremamente interessante. Assinala dois traços
comuns das várias experiências socialistas fracassadas: o monopólio de um
partido na esfera política e o monopólio do Estado na esfera econômica. Meus botões
aplaudiram, e acharam a análise irresistível, seduzidos pelo diagnóstico que, a
partir delas, o livro formula. Aprenderam, na leitura deste Paraíso
perdido - contemporâneo e brasileiro - que há, sim, medidas políticas e
econômicas a serem tomadas para humanizar a vida em nosso planeta. Aprenderam
também que tais medidas são essenciais. Elas formatam o externo, o objetivo, o
quantitativo. Mas aprenderam também que elas talvez não bastem. Aprenderam que,
talvez, aquele mundo melhor em nome do qual se fazem revoluções nas quais se
morre, também se teça de sentimentos, valores, sonhos e esperanças. Que com
muita facilidade escoam pelo ralo se não se acreditar na lição do poema que
canta que “a gente quer comida/diversão e arte./A gente não quer só comida,/a gente
quer saída/para qualquer parte...”
Meus
inquietos botões – no compasso da banda do Titãs - me puxam pela manga para
recordar que o Paradise lost, do poeta inglês, foi seguido, alguns anos
depois, por outro livro, intitulado Paradise regained (Paraíso
reconquistado). Apaziguados na luta, meus botões ficam na expectativa...
Frei Betto. Paraíso
perdido - viagens ao mundo socialista. Rio, Editora Rocco, 2015.
* Marisa Lajolo é Ensaísta, pesquisadora, crítica literária, autora de literatura juvenil e professora universitária.
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